#6
De abismos, fogo, amor e paganismo
Sonhei com rosas, tormentos e mudanças. O lugar parecia uma mistura de universidade, a escola onde estudei no ensino médio, condomínio e a rodoviária da cidade onde moro. Eu sei que não faz sentido, é bom lembrar que sonhos lúcidos não necessariamente são lógicos em sua construção. É como se o peão e o potro fossem o mesmo ser, minha cabeça indomada tentando se soltar de mim mesma que me domino e não deixo correr, apenas corcovear.
Queimei as rosas que secaram com o calor das últimas semanas. Rosas são flores demasiado delicadas para manutenciar no momento em que me encontro. Preciso fazer a minha mudança até o fim do mês. Me sinto em um acampamento, um não lugar. Não estou nem aqui, nem lá. Mesmo assim, busquei um maço para decorar a casa em trânsito. A água rápido fermentou e as flores desidrataram, soltando um cheiro ao mesmo tempo putrido e adocicado, como aquele cheiro específico que sentimos ao final dos velórios quando os mortos estão no limite de terem seus corpos exibidos, rodeados por flores para mascarar os gases que já teimam em vazar do corpo.
O cheiro das rosas queimadas parecia com um incenso antigo, um cheiro secular, intocado, inevitável, sagrado. Tentei registrar. Queria fazer o fogo queimar ao contrário, mas falhei e deixei pra lá.
Sentamos na sacada mais uma vez para falar de trabalho, dos sentimentos, dos traumas, da vida, de quem somos para os outros e um para o outro. Fazer acordos sem atar nós, desatar nós para evitar caixas. Permear a consciência e a liberdade do outro, tocar com a ponta dos dedos muito suavemente ainda entendendo os limites do que podemos ou não construir enquanto indivíduos ariscos, específicos, geniosos e pragmáticos. A ordem das camadas afeta a construção? E se eu quiser construir um edíficio de cabeça pra baixo? E se eu me segurar no arco enquanto você aponta a flecha? E se o fogo que ateei devotamente na tua frente como um ritual profano der origem às rosas? E se o sangue verter ao contrário e desafiar a morte? E se o precipício me responder, o que é que eu digo de volta?
If you look in the mirror you might not like what you see.
Andou chorando ontem à noite, meu bem? Não, eu respondi. Por quê? Porque tua maquiagem tá borrada aqui ó, parece uma lágrima. Deve ter borrado dormindo, eu disse, ou vai ver eu sou a Morte. Não me lembro de ter chorado, mas muito provavelmente foi meu sentir vertendo dos olhos quando teus olhos avermelhados - como os meus - constataram que existe amor - não amor romântico - amor, amor de fato, amor prática, amor carinho, amor cuidado, leal, indissolúvel. There is love here.
Telepathy.
Animus e anima em um tênue equilibrio, uma casa de diversos cômodos, uma rua com tantas saídas. Eu gostaria de encostar essa porta aqui por enquanto. Respondi que a porta em questão talvez fechasse sozinha com o tempo. Estamos de acordo com o risco. Ambos sabemos que se a porta fechar, talvez se abra uma janela para outro lugar que ainda não percorremos, para outro cômodo ainda inabitado dessa construção recém erigida entre musa e artista, memória e divindade, fauno e vênus. Desta janela talvez surja outra camada imprevisível, outra caverna imprescrutada, outra cicatriz indelével e impossível. Ou talvez ainda, não surja nada, e haja apenas o abismo, sorrindo invencível de volta para nós.


